Preambularmente insta, apenas para efeito didático, visando possibilitar uma melhor compreensão do tema, trazer conceitualmente os institutos denominados de precatório e requisição de pequeno valor, muito conhecido pela sigla RPV.
O precatório é um procedimento administrativo para pagamento, pelas entidades de direito público, das condenações impostas em sentenças judiciais transitadas em julgado, com tramitação no âmbito do Tribunal de Justiça, com prazos para pagamento fixados na Constituição Federal e no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
No que concerne ao prazo para pagamento do precatório, atualmente, por conta do art. 101, do ADCT, com alteração promovida pela EC n. 99/2017, todos os precatórios devem ser quitados até 31 de dezembro de 2024. Registre-se que existe em trâmite no Congresso Nacional Proposta de Emenda Constitucional (PEC 95/2019) para prorrogar o pagamento até 2028.
Por sua vez, tal como o precatório, a RPV também se trata de procedimento administrativo para pagamento, pelas pessoas jurídicas de direito público, das condenações judiciais transitadas em julgado, porém a RPV, por se tratar de obrigação de pagamento de pequeno valor, possui um procedimento simplificado e mais célere.
A título informativo, o Ente Público é a pessoa jurídica de direito público, que pode ser a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, suas respectivas Autarquias e Fundações Públicas, pessoas que quitam, através de precatório ou RPV, suas obrigações de pagar impostas em condenações judiciais.
Pois bem, feita tal consideração inicial, no Estado da Bahia já vigora a norma que define obrigação de pequeno valor em até 10 salários mínimos. Antes, até o advento da Lei Estadual n. 14.260, de 16 de abril de 2020, o valor definido era de até 20 salários mínimos.
Em 08 de abril de 2020, o Poder Executivo apresentou o Projeto de Lei ao Poder Legislativo Estadual, e a Assembleia Legislativa procedeu com todo o trâmite em sessão virtual, por conta do isolamento social imposto pela pandemia, de modo que, em 16 de abril, o Governador do Estado sancionou a Lei, e no dia seguinte a norma passou a vigorar com a sua publicação no Diário Oficial. Assim, da apresentação do projeto até a sua publicação, para entrar em vigor, a tramitação do Projeto de Lei durou exatos 10 dias.
Fazendo uma interpretação histórica da norma fast food, pode-se concluir que o legislador, diante do contexto da pandemia mundial, por causa do vírus covid-19, que vem causando prejuízo em todas as economias, objetivou promover uma adequação nas suas contas, por conta da recessão provocada pelo coronavírus.
Acredita o Estado, que a alteração no regime de pagamentos de precatórios, com a redução na obrigação de pequeno valor, paga por RPV, é uma estratégia adequada e eficaz para a contenção das despesas.
As principais alterações promovidas pela Lei Estadual n. 14.260/2020, basicamente, são:
1) Redução da obrigação de pequeno valor de até 20 salários mínimos para até 10 salários mínimos;
2) Aumento do prazo de pagamento de 2 meses para 90 dias.
As alterações assinaladas não incidem nos processos judiciais com execuções iniciadas até a data da publicação da lei, permanecendo os valores que não excedam a 20 (vinte) salários mínimos.
De igual forma, os processos judiciais, iniciados ou não, mas que tenham como titulares pessoas com enfermidades graves, reconhecidas para fins de isenção do Imposto de Renda, também fica mantido, para efeitos de obrigação de pequeno valor, a quantia equivalente de até 20 salários mínimos.
A Constituição Federal autoriza que cada ente federativo defina o valor da obrigação de pequeno valor, desde que obedeça ao critério objetivo de ser uma quantia entre o teto do INSS e o equivalente a 40 salários mínimos, no caso dos Estados e do Distrito Federal. Para a União deve ser observado o máximo de 60 salários mínimos e para os Municípios o valor máximo equivalente a 30 salários mínimos.
Em resumo: Para os Estados e Distrito Federal, quando a condenação judicial em obrigação de pagar for acima de 40 salários mínimos será sempre em forma de precatório. E quando for abaixo do teto do INSS será sempre através de RPV.
E quando o valor da condenação judicial for entre esses valores (acima do teto do INSS e abaixo de 40 salários mínimos), o próprio ente federativo, por lei específica, pode definir qual será a forma do pagamento, RPV ou precatório. Porém, caso seja omisso o valor será o previsto no art. 87, do ADCT, qual seja, 40 salários mínimos.
O art. 100, § 4º, da Constituição Federal estabelece a capacidade econômica da entidade de direito público como mais um requisito na fixação da obrigação de pequeno valor. E aqui, nesse particular, no nosso entendimento, o Estado da Bahia desobedeceu a Constituição da República ao sancionar a Lei n. 14.260/2020.
Observe-se, em análise perfunctória, que o legislador constituinte, no art. 87, do ADCT, definiu a obrigação de pagamento de pequeno valor de acordo a capacidade econômica de cada ente federativo, sendo, em regra, o valor máximo de 60 salários mínimos para a União, de até 40 salários mínimos para os Estados e Distrito Federal e de até 30 salários mínimos para os Municípios. Assim, a capacidade econômica da União é maior que a capacidade dos Estados e do Distrito Federal, que por sua vez possuem capacidade maior que a dos Municípios.
Ilustrativamente, o município de Salvador, nos termos do art. 12, da Lei Municipal n. 8.723/2014, definiu a obrigação de pequeno valor em R$ 12.000,00 (doze mil reais), reajustado anualmente pelo IPCA, ficando o valor, atualmente, em torno de R$ 15.000,00.
Pernambuco, estado vizinho ao nosso, ocupa a 10ª posição na lista de estados do Brasil por PIB, por omissão legal, define o valor da obrigação de pequeno valor em 40 salários mínimos (R$ 41.800,00); enquanto aqui na Bahia, que possui o 7º maior PIB do país, a maior economia do norte e nordeste, pela Lei Estadual n. 14.260/2020, objeto da nossa análise, o valor foi reduzido e passou a ser de até 10 salários mínimos (R$ 10.450,00).
Dessa maneira, não poderia o Estado da Bahia fixar como obrigação de pequeno valor uma quantia inferior ao valor fixado pelo município de Salvador, enquanto a Bahia define R$ 10.450,00, a Capital desse mesmo Estado fixa em R$ 15.000,00, e um estado vizinho com arrecadação inferior estipula R$ 41.800,00.
Assim, vê-se que não há proporcionalidade na fixação, pelo Estado da Bahia, da obrigação de pequeno valor, pois não foi observada a sua capacidade econômica.
Sabe-se que a obrigação de pequeno valor, no caso do Estado da Bahia, pode ter variação entre o teto do INSS e o valor de 40 salários mínimos, portanto, por esse requisito, a nova lei formalmente está de acordo a Constituição Federal (STF. ADI 4.332); entretanto, tal requisito não é uma carta branca que autorize o ente federativo, por lei específica, fixar o valor que bem entender, ainda que esteja entre os valores mínimo e máximo constitucional. O valor deve sempre ser proporcional a capacidade econômica da referida entidade de direito público, sob pena de ser inconstitucional.
Portanto, entende-se por inconstitucional a Lei Estadual n. 14.260/2020, por violação direta ao art. 100, § 4º, da Constituição Federal, bem como ao princípio constitucional da proporcionalidade, na medida em que o Estado da Bahia, ao definir obrigação de pequeno valor em até 10 salários mínimos, não observou a própria capacidade econômica, requisito explícito no texto constitucional e de observância obrigatória.
Outro ponto crucial, na nova lei estadual, diz respeito ao prazo fixado para pagamento da RPV.
O art. 535, § 3º, inciso II, do CPC/15, norma federal de natureza processual, estabelece o prazo de 02 meses a contar do recebimento da requisição pelo Ente Público. Por outro lado, o art. 2º, da Lei Estadual n. 14.260/2020, norma estadual, passou a estabelecer o pagamento no prazo máximo de 90 dias, contado do recebimento, pelo Ente, do ofício para pagamento.
Entendendo-se se tratar de norma de natureza processual, cujo competência para editar leis é privativa da União (art. 22, inciso I, da CF/88), o Estado da Bahia, nem qualquer outro ente federativo, poderia dispor do prazo de pagamento de RPV, sob pena de ser considerada a norma ilegal.
Embora não seja um tema pacífico, nem possua muita relevância pratica, entende-se que a normal estadual é ilegal, já que não poderia, diversamente, dispor de assunto de natureza processual, aumentando no caso o prazo para pagamento de 2 meses para 90 dias.
Assim, os processos em trâmite contra o Estado da Bahia tiveram as seguintes mudanças:
Primeira, redução do valor da obrigação de pequeno valor de até 20 para 10 salários mínimos, passando a ser através de precatório os pagamentos cujo valor seja superior a 10 salários mínimos, o que significa colocar o credor, que receberia no prazo de 02 meses, numa fila que, pela Constituição, o pagamento deverá ocorrer até 2024 (já existe PEC tramitando para prorrogar o pagamento para 2028).
Segunda, a alteração do valor para 10 salários mínimos, reduz, por consequência, o valor do pagamento da preferência para credores com prioridade pela idade. O art. 102, § 2º, do ADCT estabelece o valor para pagamento no precatório, para as pessoas com prioridade (idade ou doença) o quíntuplo do valor estipulado para o RPV.
Assim, o valor anteriormente definido para pagamento da preferência para credor idoso ou com enfermidade grave era de 100 salários mínimos (quíntuplo de 20 salários).
Hoje, esse valor, com a nova lei, passa a ser de 50 salários mínimos (quíntuplo de 10), para a pessoa idosa (pessoas com 60 anos de idade ou mais), permanecendo em 100 salários mínimos para os enfermos graves, por força do § 4º, do art. 1º, da Lei Estadual n. 14.260/2020, que preservou em 20 salários mínimos a obrigação de pequeno valor para essas pessoas.
As doenças graves são aquelas previstas no art. 6º, inciso XIV, da Lei Federal n. 7.713/1988: AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida); Alienação mental; Cardiopatia grave; Cegueira; Contaminação por radiação; Doença de Paget em estados avançados (Osteíte deformante); Doença de Parkinson; Esclerose múltipla; Espondiloartrose anquilosante; Fibrose cística (Mucoviscidose); Hanseníase; Nefropatia grave; Hepatopatia grave; Neoplasia maligna; Paralisia irreversível e incapacitante; Síndrome de Talidomida; Tuberculose ativa.
Terceira mudança, aumento do prazo para pagamento das requisições de pequeno valor. Pelo Código de Processo Civil, o prazo é de 2 (dois) meses, porém, agora, pela nova lei estadual, o prazo máximo passou a ser de 90 dias.
O aspecto positivo, se é que há algo de bom, foi a preservação do valor de até 20 salários mínimos para os processos que já transitaram em julgado e estão na fase de execução, respeitando-se o direito adquirido dos credores, e a manutenção de 20 salários para os credores com enfermidades graves, reconhecidas para fins de isenção do imposto de renda.
Porém, como já dito, a pessoa idosa não foi beneficiada pela lei, assim, quando do recebimento da prioridade, o idoso receberá o equivalente a 50 salários mínimos. Enquanto o enfermo grave deverá receber o dobro, 100 salários mínimos. Porém, tal regra será aplicada apenas nos processos que ainda não estão na fase de execução.
O presente trabalho não teve por escopo esgotar o tema, mas de trazer, de maneira sintética, as principais alterações e consequências da Lei Estadual n. 14.260/2020, que foi criada como uma solução para combater os efeitos danosos na economia por conta da pandemia pelo coronavírus.
Contudo, além da inconstitucionalidade e ilegalidade apontadas, parece-nos também uma medida inadequada, pois, a prima facie, seus efeitos serão sentidos a longo prazo, na medida em que o valor de 10 salários mínimos será aplicado nos processos que entrem na fase de execução a partir de 17 de abril de 2020, o que não atingirá o objetivo de, nesse primeiro momento, reduzir as despesas do Estado da Bahia.
Artigo de autoria de Fabiano Samartin Fernandes, advogado especialista em Ciências Criminais e Direito Militar, mestrando em Criminologia na UDE-Uruguai, coordenador Jurídico do CENAJUR em Salvador desde 2006 e membro do IBCCRIM.