Quem disse que não posso “entrar no mérito”?

A falácia repetida como mantra todos os dias nas audiências nos juizados especiais.

Explica-se, de início, que o presente texto tem o objetivo de tentar desfazer uma das maiores falácias que, diariamente, ainda hoje, mais de 35 anos depois da lei que criou os juizados especiais, em 1984[1], são ditas nas audiências realizadas no microssistema, no sentido de que a parte autora não pode falar sobre o mérito da causa, quando da manifestação acerca das preliminares e documentos, eventualmente, apresentados pela parte adversária.

Os processos que tramitam nos juizados especiais cíveis são orientados, nos termos do art. 2º da Lei n. 9.099/1995, pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, com o objetivo de buscar, sempre que possível, a conciliação ou a transação entre as partes.

Os juizados especiais cíveis têm competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas, em regra, aquelas cujo valor não exceda a quarenta vezes o valor do salário mínimo.

Bem. Quem atua nos juizados especiais cíveis, em especial aqui na Bahia, ouve comumente a seguinte expressão: “o autor só pode se manifestar sobre as preliminares arguidas e sobre os documentos apresentados pelo réu, e não pode falar sobre o mérito…”.

Essa expressão, repetida como mantra nas audiências realizadas nos juizados especiais, é uma falácia.

Não há na legislação, seja a revogada que instituiu os juizados especiais de pequenas causas, seja a que criou os juizados especiais cíveis e criminais, seja no próprio Código de Processo Civil, que se aplica no microssistema dos juizados, qualquer dispositivo que limite o autor de adentrar no mérito da causa ao oferecer manifestação sobre as preliminares e documentos, seja através de advogado ou não.

As únicas limitações impostas ao autor, quando da sua manifestação sobre a defesa e documentos do ex adverso, são o tempo e a forma.

Embora não tenha na lei dos juizados o prazo para manifestação da parte, o autor tem o direito a um tempo razoável para oralmente rebater cada uma das preliminares arguidas e impugnar os documentos apresentados pelo réu. Por sua vez, o juiz de direito, o juiz leigo ou o conciliador, quando da condução da audiência, têm o dever de conceder a palavra ao autor para manifestação, estipulando o tempo, não podendo, contudo, limitar o prazo de manifestação da parte de modo que ofenda os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e da razoabilidade, que são superiores, por natureza e por topografia legislativa, aos critérios da simplicidade e da celeridade.

Uma outra limitação imposta ao autor é a forma da sua manifestação, que pode ser oral ou escrita. O autor poderá optar pela manifestação oral, que é a regra, e em audiência contrapor os fundamentos trazidos pelo réu. Pode ainda requerer prazo para apresentar a sua manifestação por petição, caso entenda que a preliminar trazida e/ou o documento acostado sejam complexos para, naquele momento, oralmente rebatê-los. Como já dito, não há prazo estipulado ne lei para manifestação oral ou por escrito, cabendo ao juiz conceder um prazo que seja suficiente para equacionar o respeito à simplicidade e à celeridade dos juizados, com as garantias da ampla defesa e do contraditório.

Sabe-se que o microssistema dos juizados é orientado pelos critérios da simplicidade, da economia processual e da celeridade, dentre outros, com o objetivo de tornar o processamento e julgamento dos processos mais rápidos; entretanto, não pode sob o manto da celeridade ofender o princípio da ampla defesa, que constitui garantia para as partes terem condições de apresentarem argumentos, no processo, e mais todos os elementos necessários para esclarecer a verdade a fim de convencer o julgador, inclusive com a faculdade da parte de manter-se em silêncio.

“Sem argumentação o Direito é inerte e inoperante, pois fica paralisado nas letras da lei, no papel. A partir do momento em que se exercita o Direito […] a argumentação passa a ser imprescindível”[2] (RODRIGUEZ, 2005, p. 6). Tem-se assim que o processo é a exteriorização do Direito, quando as partes, cada qual no seu momento, poderão exercer, dialeticamente, a retórica com o objetivo de convencer o julgador.

Assim, não há qualquer norma que impeça a parte ao apresentar manifestação sobre preliminares e/ou documentos, de fazer menção ao meritum causae. Pelo contrário, a Constituição Federal é uma garantia fundamental para as partes poderem, utilizando-se as regras do jogo, argumentar livre e respeitosamente, com o fito de convencer o julgador sobre os seus fundamentos.

Importante trazer que a ampla defesa é um princípio de índole constitucional, e que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, é assegurado o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, inciso LV, CF/88).

A consequência pela não impugnação adequada das preliminares e/ou documentos é a perda da oportunidade de trazer argumentos para formar o convencimento do julgador, ocorrendo, nesse caso, quando não há a manifestação, a preclusão consumativa. O processo é um conjunto de atos praticados pelos seus personagens – autor, réu, juiz, servidor –, de modo que, cada ato tem o seu tempo e modo adequados, que não praticado, ou praticado extemporâneo, haverá a ocorrência da preclusão, e aqui cabe a parte autora, através de advogado ou não, ficar atenta na audiência para, caso não concedida a palavra, protestar para trazer os seus pontos argumentativos sobre eventuais preliminares e documentos.

Antes de avançar para a conclusão, para melhor compreensão do texto, oportuno definir “mérito da causa” para os incautos. Pois bem, perfunctoriamente, entende-se por mérito da causa (ou meritum causae) o centro da discussão do processo envolvendo as partes, o pedido e a sua causa de pedir. Assim, “entrar no mérito” é falar sobre qualquer circunstância que seja relacionada, direta ou indiretamente, as partes, ao objeto e ao próprio pedido do processo.

Portanto, afronta os princípios da ampla defesa e do contraditório, dissociar a manifestação da parte autora sobre determinada preliminar sem, necessariamente, abordar o mérito do processo. Como, por exemplo, impugnar uma preliminar de ilegitimidade ativa ou passiva sem justificar com os argumentos meritórios do processo? Como impugnar um documento sem que mencione os fatos que ensejaram a ação?

A questão ora analisada acontece cotidianamente nas audiências que ocorrem nos juizados especiais, e arranha a ética quando o advogado, no momento da sua manifestação, é interrompido pela parte adversária com a acusação de ter “entrado no mérito da causa”. Muitas vezes quem interrompe sequer sabe o significado de mérito da causa.

A interrupção na manifestação do advogado afronta a liturgia protocolar da audiência, pois a palavra não foi concedida à parte contrária, viola o direito constitucionalmente garantido no art. 133, da Constituição Federal, bem como se trata de falta de ética profissional (além de ser falta de respeito, educação e civilidade), pois ofende o Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906/1994), que no seu art. 7º assegura ao advogado o exercício com liberdade da profissão, e o Código de Ética e Disciplina da OAB que no art. 44 obriga o dever de urbanidade entre os advogados, que devem agir com respeito, discrição e independência. Assim, se a interrupção é feita por outro advogado, este pode ser responsabilizado disciplinarmente, sem prejuízo de ser advertido por quem tenha a condução da audiência, além de demonstrar que precisa reler o Código de Ética e Disciplina da OAB.

No presente trabalho não há qualquer alusão a manifestação sobre o pedido contraposto, equivalente a reconvenção no procedimento comum, por não ter qualquer divergência sobre essa questão, quando há deferimento da parte manifestar-se sobre todos os pontos trazidos, inclusive o mérito.

O objetivo do presente trabalho é desmistificar a falácia, repetida como mantra, de que no juizado especial a parte autora não pode “entrar no mérito”, quando manifestar-se sobre preliminares ou documentos. Aqui, entende-se que não se trata de uma mera faculdade, mas um dever do advogado de, no exercício da sua profissão, defender os interesses dos seus patrocinados, o que o obriga a trazer todos os pontos argumentativos para o convencimento do juiz, seja falando ou não sobre o mérito da causa. O que não pode é, em hipótese alguma, o advogado ser interrompido na sua manifestação para ser admoestado, por quem quer que seja, pena de caracterizar grave cerceamento de defesa, com repercussões processual (nulidade) e ético-disciplinar.

Há de haver vozes em contrário, natural.

[1] A Lei n. 7.244/1984 criou os juizados especiais de pequenas causas. Atualmente a Lei n. 9.099/1995 dispõe sobre os juizados especiais cíveis e criminais, que substituíram os juizados de pequenas causas.

[2] RODRIGUEZ, Víctor Gabriel. Argumentação Jurídica: Técnicas de Persuasão e Lógica Informal. 4a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Sobre o autor: FABIANO SAMARTIN FERNANDES

Advogado especialista em Ciências Criminais e Direito Militar, Mestrando em Criminologia, Coordenador Jurídico do CENAJUR e membro do IBCCRIM. O Autor foi conciliador federal no juizado especial federal da seção judiciária da Bahia e juiz leigo no juizado especial cível de Salvador.